Canto Negro
Carlos Drummond de Andrade
À beira do negro poço
Debruço-me, nada alcanço
Decerto perdi os olhos
Que tinha quando criança
Decerto os perdi, com eles
É que te encarava, preto
Gravura de cama e padre
Talhada em pele, no medo
Ai, preto, que ris em mim
Nesta roupinha de luto
E nesta noite sem causa
Com saudade das ambacas
Que nunca vi, e aonde fui
Num cabelo no sovaco
Preto que vivi, chupando
Já não sei que seios moles
Mais claros no busto preto
No longo corredor preto
Entre volutas de preto
Cachimbo em preta cozinha
Já não sei onde te escondes
Que não me encontro nas tuas
Dobras de manto mortal
Já não sei, negro, em que vaso
Que vão ou que labirinto
De mim, te esquivas a mim
E zombas desta gelada
Calma vã de suíça e de alma
Em que me pranteio, branco
Brinco, bronco, triste blau
De neutro brasão escócio
Meu preto, o bom era o nosso
O mau era o nosso, e amávamos
A comum essência triste
Numa visguenta doçura
De vulva negro-amaranto
Barata! Que vosso preço
Ó corpos de antigamente
Somente estava no dom
De vós mesmos ao desejo
Num entregar-se sem pejo
De terra pisada
Amada
Talvez não, mas que cobiça
Tu me despertavas, linha
Que subindo pele artelho
Enovelando-se no joelho
Dava ao mistério das coxas
Uma ardente pulcritude
Uma graça, uma virtude
Que nem sei como acabava
Entre as moitas e coágulos
De letárgica bacia
Onde a gente se pasmava
Se perdia, se afogava
E depois se ressarcia
Bacia negra, o clarão
Que súbito entremostravas
Ilumina toda a vida
E por sobre a vida entreabre
Um coalho fixo lunar
Neste amarelo descor
Das posses de todo dia
Sol preto sobre água fria
Vejo os garotos na escola
Preto-branco-branco-preto
Vejo pés pretos e uns brancos
Dentes de marfim mordente
O alvor do riso escondendo
Outra negridão maior
O negro central, o negro
Que enegrece teu negrume
E que nada mais resume
Além dessa "solitude"
Que do branco vai ao preto
E do preto volta pleno
De soluços e resmungos
Como um rancor de si mesmo
Como um rancor de si mesmo
Vem do preto essa ternura
Essa onda amarga, esse bafo
A rodar pelas calçadas
Famélica voz perdida
Numa garrafa de breu
De pranto ou coisa nenhuma:
Esse estar e não estar
Esse ir como esse refluir
Dançar de umbigo, litúrgico
Sofrer, brunir bem a roupa
Que só um anjo vestira
Se é que os anjos se mirassem
Essa nostálgica rara
De um país antes dos outros
Antes do mito e do sol
Onde as coisas nem de brancas
Fossem chamadas, lançando-se
Definitivas eternas
Coisas bem antes dos homens
À beira do negro poço
Debruço-me; e nele vejo
Agora que não sou moço
Um passarinho e um desejo