Patriota Comunista
Gabriel O Pensador
Tá ficando tarde
Acho que era nisso que eu pensava
Enquanto tentava dormir
Pra ver se pelo menos dormindo, eu ainda sonhava
E o sono não queria vir
Pra ver se pelo menos dormindo
Eu ainda conseguia respirar
Tô ficando sem ar
Acho que era nisso que eu pensava
Enquanto o meu sonho tentava chegar
Tentando desligar minha cabeça
Mas em alguma tela, esse filme passava
Era um filme de sangue
Ou seriam as notícias?
Era um filme de gangue
Ou seria uma milícia?
Era um filme de época
Uma velha novela
O terror na favela, e o hospital saturado
A criança espancada, era um trans torturado
Eu fiquei transtornado, eram cenas horríveis
Transcendendo níveis jamais tolerados
Já mais tolerados
Agora por seres humanos já mais insensíveis
Já mais insensíveis do que os alemães
Que tratavam os judeus como gado marcados com brasa
E no Brasa, 80 anos depois, o enredo é igual
Medo e maniqueísmo (e o ódio é normal)
Preconceito é aceito (e a morte é banal)
Ou você é excomungado, ou você é como os bois
Isso aqui sempre foi um curral
Uma bíblia, uma bunda, uma bola
Uma pinga e uma sobra de feijão com arroz
O que mais poderíamos querer?
Uma arma pra cada
Uma bela piada, zombando da cara de quem vai morrer
Será que a minha amiga de Belo Horizonte
Pulou da janela do quinto
Sentindo essa angústia que eu sinto?
Por já não ver nada de belo
Ao buscar um horizonte e enxergar vários monstros
Brindando com cálices de vinho tinto
E a carne mais cara no prato
A carne barata é a dos pretos
Compartilham prantos e prints das fotos dos corpos
Mas nos comentários, o texto vem pronto
Se morreu no morro e é preto e fodido
Deve ser bandido, então tudo bem
Se a Katlen não fosse mulher e gestante
Iam dizer que ela era traficante também
Se a família chora, o poder ignora, e o diabo até ri
Agora o meu sono tá vindo e eu também tô sorrindo
Brincando com o menino Henry
Acabou Chorare
No sonho, eu componho com Moraes Moreira
Mas nem lá de cima ele esquece a vergonha
Lá vem o Brasil descendo a ladeira
E os Novos Baianos que chegam no céu
Foram executados
Por terem tentado furtar um pedaço de carne
Num supermercado
Então os seguranças pegaram em flagrante
Primeiro pediram dinheiro
Mas logo mandaram chamar os traficantes do bairro
E mandaram entregar os ladrões de galinha pro coveiro
Chegaram no céu
E aí, Gabriel, você por aqui?
Fiquei preocupado, será que eu morri?
Mas é só um sonho
Vou ver se aproveito pra dar um abraço em meu pai
Difícil encontrar, chega gente demais
Numa fila que nunca termina
Vi uns anjos ali reclamando
Porque tinha país recusando vacina
Disfarcei minha nacionalidade
Eu acho que eu sou patriota
Mas no céu, quem puser suas bandeiras acima de tudo
Deus dá cascudo e chama de idiota
Eu acho que eu sou humanista
Mas a humanidade tá punk
Eu peço um papel e uma caneta
Começo uma letra e encontro Aldir Blanc
Me encanto com um conto do Rubem Fonseca
E canto uma do Roupa Nova
Enquanto num canto, Jesus me observa
Com cara de quem desaprova
Eu acho que eu sou comunista
Pois sempre chutei de canhota
Encontrei o Maradona gritando: Argentina!
Eu acho que ele é patriota
Sou patriota? Sou comunista?
Ou só mais um morto vivendo no inferno?
Só mais um sonho morrendo no céu
Mais uma nota no bolso do terno
Sou patriota? Sou comunista?
Sou um cacique atacado na oca
Sou uma criança pedindo comida
Sou uma foca aplaudindo uma orca
Sou um cientista pedindo uma esmola
Sou um quilombola virando piada
Sou uma vida que nem vale um dólar
Sou uma preguiça assistindo à queimada
Sou só mais um dos milhões de indivíduos
Tão divididos na morte e na vida
Somos devotos dos santos bandidos
Briga de votos, parece torcida
Gritos de mito e de genocida
Almoço grátis com merda no prato
Toda verdade será distorcida
Todo poder pro capitão do mato
Quando eu morrer
Não quero choro, nem vela
Quero uma fita amarela
Gravada com o nome dela
Tá ficando estranho esse sonho
Mais um amigo chegando risonho
Eduardo Galvão, seu olhar ainda brilha
Mandando um recado pra filha
Querida, a vida é pra ser bem vivida
Não é uma corrida pro pódio
Amigo, ela sabe, eu também
E por isso também sobreponho o amor ao ódio
E sempre que posso, ainda sonho
E tento inspirar tolerância
Se eu pude aprender com os meus erros
Não quero enterrar a esperança
Em que em tempos de tantos enterros
O homem ainda enxergue a aberração da arrogância
E agarre esse chance de achar
Uma mudança de rumo, atitude e conduta
Mas fica difícil encontrarmos caminhos mais justos
Se todos nós somos tão filhos da puta
Fazendo de tudo pra levar vantagem em tudo
Achando normal o absurdo
Pagando de louco, de cego, de surdo
Apenas quando nos convém
Estamos doentes
O vereador e a mãe do menino
O governador e o ministro assassino
Que mata inocente no morro ou dispensa a vacina
De onde eles vêm?
Virou pesadelo esse sonho
Olhando pra gente, eu até me envergonho
E eu acho que sou um cidadão de bem
Por isso me exponho e me cobro também
Se eu pude aprender pela voz dos poetas
Não posso aceitar a censura
Se os meus professores abriram minha mente
A cura tá na educação e na cultura
Já tá uma tortura esse sonho
E falando em cultura, olha quem aparece
Trazendo ironia e coragem
Me arranca um sorriso e alivia o estresse
No sonho, ele vem com milhares de vítimas
500 mil mortos ou mais
Acordo assustado e o sorriso do Paulo Gustavo
Na dor se desfaz
Só sinto o meu corpo gelado
E do lado da cama, uma frase dizendo: Aqui jaz
Esfrego os meus olhos e vejo
Que sou um escravo amarrado num tronco
E quando o chicote arrebenta minhas costas
Me sinto impotente, mas olho pra trás
A lágrima lava o meu rosto
E eu, já consciente, levanto pra sonhar de novo
E quebro as correntes quando reconheço
O meu rosto na cara do meu capataz
Quando eu morrer
Não quero choro nem vela
Quero uma fita amarela
Gravada com o nome dela