Payada
Jayme Caetano Braun
Raízes, tronco, ramagem, ramagem, tronco, raiz
Abriu-se uma cicatriz de onde brotei na paisagem
O tempo me fez mensagem que os ventos pampas dirigem
Dos anseios que me afligem de transplantar horizontes
Buscando o rumor das fontes pra beber água na origem
Sobre o lombo da distância, de paragem em paragem
Fui repontando a mensagem de bárbara ressonância
Fazendo pátria na infância porque precisei fazê-la
E a liberdade, sinuela, sempre foi a estrela guia
Que o meu olhar perseguia como quem busca uma estrela
Pensei chegar alcançá-la, no estágio de índio rude
Mas nunca na plenitude, porque essa deusa baguala
Que aos andejos embuçala, nunca ninguém alcançou
Bisneto nem bisavô, nos entreveros mais brutos
Labareda de minutos que o vento sempre apagou
Primeiro era o campo aberto, descampado, sem divisas
Com fronteiras imprecisas, mundo sem longe nem perto
Eu era o índio liberto, barbaresco e peleador
Rei de mim mesmo, senhor da natureza selvagem
A religião da coragem e o Sol de bronze na cor
Um dia veio o jesuíta a este rincão do planeta
Vestindo a sotaina preta na catequese bendita
Foi mais do que uma visita à minha pampa morena
Bombeei por trás da melena, olhos nos olhos o irmão
E gravei no coração a Santa Cruz de Lorena!
Mais tarde, veio mais gente às minhas terras campeiras
A falange das bandeiras, impiedosa e inclemente
Me levantei de repente e as tribos se levantaram
As várzeas se ensanguentaram, elas que eram verdejantes
Mas eu venci os bandeirantes, que nunca mais retornaram!
E depois vieram os lusos, os negros, os castelhanos
E nos pagos campejanos, novas normas, novos usos
As violências e os abusos da Ibéria, Castela e Lácio
Que rasgaram o prefácio e mataram as plegárias
E as ânsias comunitárias dos irmãos de Santo Inácio
Não pude deter a vaga de Andonega e Barbacena
Se a história não os condena, a mancha nunca se apaga
A opressão jamais indaga na sua ambição mesquinha
Era meu tudo o que tinha, era meu tudo o que havia
E eu morri porque dizia que aquela terra era minha!
Mas o eterno não morre, porque permaneço vivo
No lampejo primitivo de cada fato que ocorre
O meu sangue rubro corre na velha raça gaudéria
Corcoveando em cada artéria pela miscigenação
Na bárbara transfusão com os andarengos da Ibéria
Fui sempre aquilo que sou, sou sempre aquilo que fui
Porque a vida não dilui o que a mãe terra gerou
Sou o brasedo que ficou e aceso permaneceu
Sou o gaúcho que cresceu junto aos fortins de combate
E já estava tomando mate quando a pátria amanheceu!
E assim, crescendo ao relento, criado longe do pai
Junto ao mar doce, Uruguai, o rio do meu nascimento
Soldado sem regimento no quartel da imensidade
Um dia me deu vontade, deixei crescer toda a crina
E me amasiei com uma China que chamei de liberdade
Por mais de trezentos anos fui pastor e sentinela
Na linha verde e amarela, peleando com castelhanos
Gravando com los hermanos a epopeia do fronteiro
Poeta, cantor e guerreiro da América que nascia
Na bendita teimosia de continuar brasileiro!
Com Bento em mil entreveros, em barbarescos ensaios
Depois contra os paraguaios, em Humaitá e Toneleros
Andei em Monte Caseros, Paiçandu, Peribebuí
Passo da Pátria, Avaí, longe do meu território
E fui ordenança de Osório nos campos de Tuiuti
Depois, em noventa e três, na gesta federalista
A pátria a perder de vista, andei peleando outra vez
Sem soldo no fim do mês porque pelear era lindo
As espadas retinindo, chapéu batido na copa
Como carneador de tropa nas forças de Gumercindo
Mais adiante, em vinte e três, em vinte e quatro de novo
É o destino do meu povo que assim altivo se fez
A marca da intrepidez deste velho território!
Ante o bárbaro ostensório dos lenços rubros e brancos
Acompanhei os arrancos do velho Flores, e Honório
Chimangos e maragatos, farrapos, federalistas
Caminhadas e conquistas que a história guarda em seus fatos
Os tauras intemeratos de adaga e pistola à cinta
Não há ninguém que desminta nossa estirpe de raiz
Que se adonou da matriz nas arrancadas de trinta
Depois vesti a verde-oliva, como sempre voluntário
No Corpo Expedicionário, formando uma comitiva
Da nossa indiada nativa pra responder um libelo
E o pendão verde-amarelo, no outro lado do mundo
Cravei, bem firme e bem fundo, no velho Monte Castelo!
Hoje os tempos demudados, meu coração continua
O mesmo tigre charrua das andanças do passado
Sempre de pingo encilhado, bombeando pampa e coxilha
A pátria é minha família! Não há Brasil sem Rio Grande
E nem tirano que mande na alma de um farroupilha!