Payada das Missões
Jayme Caetano Braun
Meus irmãos de território
É o pajador das missões
Que repontou dos fogões
Seu bárbaro repertório
Que chega para um ajutório
Do nativismo e da crença
Cantar é mais do que uma doença
Que mau-olhado ou quebranto
E eu sou viciado no canto
E canto se dão licença.
Tetraneto de cacique,
Bisneto de curandeira
Trago um breve da parteira
Dos ranchos de pau a pique
Isso talvez justifique
Essa imponência baguala
Do cantor que quando fala
Do sorsal que quando canta
Brotam notas da garganta
Que até o silêncio se cala.
E se fui índio primeiro
Deste chão abarbarado
Antes de ser espoliado
Pelo ibérico estrangeiro
Depois de ser missioneiro
Não caí sem resistência
E na bárbara pendência
Do taura - sem Deus, nem lei
Eu mesmo me aquerenciei
Dentro da própria querência.
E se ela me foi tomada
Num raio guacho de luz
Quando a beleza da cruz
Curvou-se à força da espada
Extinta a chama sagrada
Que toda cultura encerra
Eu que fui morto na guerra
Num barbaresco repuxo
Me transformei em gaúcho
E renasci sobre esta terra.
Irmão gêmeo de Sepé
Retornei de muito longe
Trazendo a bêncão de um monge
E do último pagé
Que me ensinaram a fé
E a senha dos rapezodos
Para acalmar os denodos
De missioneiro andador
No ofício de pajador
Que é o mais crioulo de todos.
Desde então, canto - e cantando
Persigo o tempo que viaja
Em qualquer parte onde haja
Uma pátria se formando
Um oprimido peleando
E uma causa em abandono
Sem nunca pegar no sono
Onde existam espoliados
Ou tiranos apossados
De coisas que não tem dono.
Eu canto a cordeona que chora
E a guitarra que ponteia
A Dalva que fogoneia
Quando vem clareando a aurora
O pialo porteira a fora
E o boi manso lambendo a canga
Canto os lábios de pitanga
Que tem gosto de resina
E o corpo doce da china
Respingando água da sanga.
Eu canto a estrela boieira
Eu canto o céu estrelado
Eu canto o berro do gado
Canto a vivência campeira
Canto as lides de mangueira
E os remansos do açude
E no instinto de índio rude
Dos primeiros evangelhos
Canto a esperança dos velhos
E as ânsias da juventude.
Eu canto a infância - essa planta
Que merece ser cuidada
A planta mais delicada
Que nos ares se levanta
Ela é a cultura mais santa
Precisa de água e calor
Porque Deus - nosso senhor
Fez a luz, fez a umidade
Pra que houvesse liberdade
E dela, brotasse a flor.
Não gosto de cantar rios
Mortos pelos insensatos
Nem vítimas de artefatos
Dos humanos desvarios
Nem os corações vazios
Dos escravos de a cabresto
E dentro deste contexto
Não quero cantar de novo
Os ancestrais do meu povo
Mendigos vendendo cesto.
Eu canto o dia que nasce
Eu canto a tarde que morre
Eu canto a sanga que corre
E a lua que mostra a face
E se o mundo se acabasse
Numa tragédia bravia
Assim mesmo eu cantaria
Um mundo nascendo doutro
Indiada domando potro
E bugra lavando a cria.
Se acaso um dia, os feitores
Dos quatro pontos cardeais
Queimassem seus arsenais
Mandando cultivar flores
Nosotros, os pajadores
Queimaríamos incenso
No templo do pampa imenso
Berço do ancestral andejo
Que peleava por um beijo
E morria por um lenço.