A Morte

Pedro Bial Pedro Bial

A morte, por si só, é uma piada pronta
Morrer é ridículo
Você combinou de jantar com a namorada
Está em pleno tratamento dentário
Tem planos para semana que vem
Precisa autenticar um documento em cartório
Colocar gasolina no carro
E no meio da tarde, morre

Como assim?
E os e-mails que você ainda não abriu?
O livro que ficou pela metade?
O telefonema que você prometeu dar
À tardinha para um cliente?
Não sei de onde tiraram esta ideia

Morrer, a troco?
Você passou mais de dez anos da sua vida
Dentro de um colégio
Estudando fórmulas químicas
Que não serviram para nada
Mas se manteve lá, fez as provas
Foi em frente

Praticou muita educação física
Quase perdeu o fôlego, mas não desistiu
Passou madrugadas sem dormir para estudar
Pro vestibular, mesmo sem ter certeza
Do que gostaria de fazer da vida
Cheio de duvidas quanto à profissão escolhida

Mas era hora de decidir, então decidiu
E mais uma vez foi em frente
De uma hora pra outra, tudo isso termina
Numa colisão na freeway
Numa artéria entupida
Num disparo feito por um delinqüente
Que gostou do seu tênis

Qual é? Morrer é um chiste
Obriga você a sair no melhor da festa
Sem se despedir de ninguém
Sem ter dançado com a garota mais linda
Sem ter tido tempo de ouvir
Outra vez sua música preferida

Você deixou, em casa
Suas camisas penduradas nos cabides
Sua toalha úmida no varal
E penduradas, também, algumas contas

Os outros vão ser obrigados
A arrumar suas tralhas
A mexer nas suas gavetas
A apagar as pistas que você deixou
Durante uma vida inteira

Logo você, que sempre dizia
Das minhas coisas cuido eu
Que pegadinha macabra
Você sai sem tomar café e talvez não almoce
Caminha por uma rua, e talvez
Nem chegue na próxima esquina

Começa a falar e talvez não conclua
O que pretende dizer
Não faz exames médicos
Fuma dois maços por dia, bebe de tudo
Curte costelas gordas e mulheres magras
E morre num sábado de manhã

Isso é para ser levado a sério?
Tendo mais de cem anos, vá lá
O sono eterno pode ser bem-vindo
Já não há muito mesmo a fazer
O corpo não acompanha a mente
E a mente também já rateia
Sem falar que há quase nada guardado nas gavetas

Ok, hora de descansar em paz
Mas antes de viver tudo?
Morrer cedo é uma transgressão
Desfaz a ordem natural das coisas

Morrer é um exagero
E, como se sabe, o exagero
É a matéria-prima das piadas
Só que esta não tem graça
Por isso, viva tudo que há para viver
Não se apegue as coisas pequenas
E inúteis da vida
Perdoe sempre!

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